Se rejeitarmos os irmãos em suas dores nos tornamos indignos

Se rejeitarmos os irmãos em suas dores nos tornamos indignos da Cruz de Cristo

 

Há muitos caminhos de espiritualidade no cristianismo. A mística ou o caminho místico é um deles, e se encontra enraizado na identificação com Jesus Cristo. Não é feito apenas de práticas exteriores, antes preocupa-se muito mais com o impacto da espiritualidade no coração de quem acredita no Senhor.

O caminho místico possui pelo menos três etapas: a purificação, a iluminação ou contemplação, e finalmente a união. E assim, o místico é alguém que se identifica com o despojamento e rebaixamento de Jesus, que sendo Deus, se fez homem, mergulhando na morte de Cruz; também escolhe ver com os olhos da fé as verdades eternas anunciadas pela vinda do Filho de Deus feito homem anunciadas na proclamação do seu Evangelho; e assim, torna-se não apenas um simpatizante da fé, ou um seguidor à distância, mas um com o Mestre, isto é, vivendo nEle, permite a vida dEle em si mesmo e comunica-a, sem jamais se confundir com o Senhor.

O caminho de purificação pode ter como obras externas a mortificação, a penitência, o jejum e a esmola, como as exercitamos na quaresma. O caminho da iluminação não é apenas ver com os olhos, mas pela graça do Espírito Santo acessar a Revelação de Deus, amando a Palavra e o que ela diz, assumindo-a como alimento de salvação; a Palavra revela Deus ao ser humano, e o ser humano a si mesmo e aos irmãos; de tal maneira, a quaresma nos dispõe para a luz da pregação de Jesus e da Igreja na força do Espírito Santo que nos guiará à Pentecostes. O caminho de união permite que se viva a própria vida como expressão autêntica e prolongamento da vida de Jesus, como filhos no Filho, moral e eticamente, na Igreja e no mundo; de fato, o caminho de união só se consumará definitivamente depois da morte, na eternidade, mas seus sinais podem ser experimentados aqui neste mundo terrestre.

A oração e o silêncio nutrem o caminho místico e edificam a vida cristã. Nos colocam diante de Deus, de nós mesmos e do próximo, em estado de contemplação, isto é, nos inserindo em diálogo amoroso. Logo, o caminho místico não é jamais um caminho de isolamento, individualista e egocêntrico, mas um convite a relações sempre mais profundas que implicam sempre, se autênticas, sair de nós mesmos.

O Tempo Pascal exercita em nós o caminho místico na liturgia. Vamos com Jesus sofredor pelo caminho do seu rebaixamento por amor, e nos identificamos com sua dor e sofrimento. Desejamos alcançar a graça de olhar para o irmão com a mesma compaixão que sentimos por Jesus. Não queremos nos associar àqueles que gritaram: crucifica-o! Precisamos, através da força de vontade amparada na graça, rejeitar as forças de ódio e violência que gritam da nossa carne não mortificada e desejam sangue derramado sem limites.

Depois da Páscoa, vamos caminhando com Jesus ressuscitado, escutando seu Evangelho, e o que ele revela sobre a grandeza de Deus e da vida humana sobre a Terra; sobre seu Reino em suas dimensões transitória e definitiva. Desejaremos alcançar a graça de ver quem Deus é, isto é, amor e fidelidade sem limites, e que somos nós em seu plano de amor, destinatários da Nova Aliança em sua misericórdia sem fim. Uma vez iluminados somos convidados a nos compreender como faróis plantados no mundo para iluminar as escuridões com a luz que é Cristo, atraindo todos ao encontro com Jesus.

Finalmente, esperamos neste caminho de espiritualidade nos tornarmos “outros cristos”, na família, na comunidade cristã e na sociedade, semeando o amor com que Deus Pai criou todas as coisas, com que o Filho Jesus Cristo salvou a humanidade e renovou o universo, com que o Espírito Santo nutre com a presença divina tudo que vive. Almejamos, ainda, que seja natural em nós cuidar como Deus cuida, e socorrer como Deus socorre, para que o sofrimento seja extinto do mundo pela partilha compassiva dos santos até a intervenção definitiva de Deus no fim.

A fé que atua pela caridade proclama, por este caminho místico, que as necessidades do Planeta e de cada ser humano, lembradas pelas Campanhas da Fraternidade no Brasil, cheguem ao nosso coração como convite à corresponsabilidade, desafiando-nos ao dom de si, como fez Jesus. Tudo e todos têm a ver com Deus e com cada um de nós, e sem esta rede de solidariedade nós não existimos; pelo contrário, sem esta rede fraterna nos perdemos de Cristo e de nós mesmos. E certamente perdemos a salvação, pois nos distanciamos da identificação com o Senhor; e fora da união com Cristo não existe salvação!

Um caminho místico fora do mundo certamente não corresponde às exigências do Evangelho de Jesus, e da missão que confiou à sua Igreja, tanto aos primeiros como a nós. De outra forma, somos chamados à oração e ao silêncio que conquistamos como graça na quaresma, caminhando no meio das turbulências, não fechados às dores e às angústias dos que sofrem, mas procurando transformar a dor dos irmãos, primeiro no coração, depois pelo nosso trabalho, como verdadeiro testemunho que somos seguidores do Caminho de Jesus.

Termino: enquanto Jesus era crucificado, aqueles que o acompanharam desde a Galileia ficaram à distância assistindo sua crucifixão, conforme a narrativa lucana. E de fato, Jesus, no tempo certo, seria socorrido pelo Pai e pelo Espírito Santo; seu povo o matou, mas ele ressuscitará. Contudo, confiou aos novos discípulos do Reino, que neste momento eram inevitavelmente expectadores distantes, uma missão que na sua Cruz não foram capazes de realizar: socorrer outros crucificados e padecentes como Ele. Se rejeitarmos os irmãos em suas dores nos tornaremos indignos da Cruz de Cristo. E sequer pisamos o primeiro degrau da vida mística, o da purificação pela compaixão.

 

Padre Rodolfo Gasparini Morbiolo (Abril, 2025)

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