Querida Amazônia

Depois de muita polêmica inflacionada em torno do fim do celibato sacerdotal, da ordenação de mulheres e de conspiração contra a soberania nacional, com a publicação da Exortação Apostólica Pós-Sinodal “Querida Amazônia”, ocorrida neste dia 12 de fevereiro, podemos finalmente nos concentrar sobre polêmicas que valem a pena. Sim! A Exortação “Querida Amazônia” traz provocações que devem incomodar e provocar debates. Para que os debates sejam frutuosos é preciso dar-se conta dos “escândalos” verdadeiros que o documento traz. É claro que, para se deixar provocar pela Exortação, não basta este artigo. É preciso ler com atenção todo o documento. Apresento aos leitores alguns poucos temas provocativos para incentivar a leitura pessoal.

Depois de ouvir com humildade e atenção as vozes que vieram de representantes da Amazônia – um vastíssimo bioma partilhado por nove países: Brasil, Bolívia, Colômbia, Equador, Guiana, Peru, Suriname, Venezuela e Guiana Francesa – o Papa Francisco formula quatro sonhos que o inspiram.

“Sonho com uma Amazônia que (1.) lute pelos direitos dos mais pobres, dos povos nativos, dos últimos, de modo que a sua voz seja ouvida e sua dignidade promovida; (2.) que preserve a riqueza cultural que a caracteriza e na qual brilha de maneira tão variada a beleza humana; (3.) que guarde zelosamente a sedutora beleza natural que a adorna, a vida transbordante que enche os seus rios e as suas florestas; (4.) e com comunidades cristãs capazes de se devotar e encarnar de tal modo na Amazônia, que deem à Igreja rostos novos com traços amazônicos”. Em poucas palavras, trata-se de sonho social, ecológico, cultural e eclesial.

Note que o Papa não fala de “utopia”, mas de “sonho”, quase é uma tradução secularizada do termo teológico “escatologia”, da virtude teologal da “esperança” e da expressão bíblica “Reino de Deus”.

O sonho social para a Amazônia consiste no progresso integral de todos os seus habitantes, o que impõe um empenho mais decidido em favor dos seus pobres. Nesse sentido, a exortação apostólica adverte os poderes locais a não usarem como desculpa o progresso social para fazerem alianças “com o objetivo de devastar, de maneira impune e indiscriminada, a floresta com as formas de vida que abriga. A disparidade de poder é enorme, os fracos não têm recursos para se defender, enquanto o vencedor continua a levar tudo” (13)

O sonho cultural consiste em “cultivar sem desenraizar, fazer crescer sem enfraquecer a identidade, promover sem invadir” (28). O Papa constata: “Cada povo, que conseguiu sobreviver na Amazónia, possui a sua própria identidade cultural e uma riqueza única num universo multicultural, em virtude da estreita relação que os habitantes estabelecem com o meio circundante, numa simbiose – de tipo não determinista – difícil de entender com esquemas mentais alheios” (31).

Na Amazônia, as culturas existem e coexistem intimamente ligadas ao meio ambiente. Dessa relação surge o sonho ecológico. “Ao lado da ecologia da natureza, existe uma ecologia que podemos designar ‘humana’, a qual, por sua vez, requer uma ‘ecologia social’. E isto requer que a humanidade tome consciência cada vez mais das ligações existentes entre a ecologia natural, ou seja, o respeito pela natureza, e a ecologia humana. Esta insistência em que tudo está interligado vale especialmente para um território como a Amazônia” (41).

O sonho eclesial consiste no anúncio do Evangelho. “Como cristãos, não renunciamos à proposta de fé que recebemos do Evangelho. Embora queiramos empenhar-nos lado a lado com todos, não nos envergonhamos de Jesus Cristo” (62). As pessoas “têm direito ao anúncio do Evangelho” (64). “Ao mesmo tempo que anuncia sem cessar o querigma, a Igreja deve crescer na Amazónia. Para isso, não para de moldar a sua própria identidade na escuta e diálogo com as pessoas, realidades e histórias do território. Desta forma, ir-se-á desenvolvendo cada vez mais um processo necessário de inculturação, que nada despreza do bem que já existe nas culturas amazônicas, mas recebe-o e leva-o à plenitude à luz do Evangelho” (66).

O leitor atento pode discordar das escolhas que fiz. Possa essa discordância ser fruto de uma leitura pessoal e que nos conduza a um aprofundamento.

Por Dom Julio Endi Akamine, SAC

 

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