Chiara, uma mulher que ousou adotar Deus como Ideal

1920-2020 – Um século atrás, nascia uma mulher que, ao adotar Deus como Ideal, fundou um movimento eclesial que ultrapassou as fronteiras da Igreja, alcançou até os não crentes e trouxe contribuições para a Cultura e a Economia, entre outras áreas do pensamento humano.

Se viva fosse, Chiara Lubich completaria 100 anos na quarta-feira, 22 de janeiro de 2020. Mas o le­gado da fundadora do Movimento dos Focolares é tão vasto que se pode dizer que Chiara está viva em seus seguido­res e em sua Obra de espiritualidade nascida no norte da Itália, em Trento, em meio aos terríveis combates da 2ª Guerra Mundial, e que vai muito além da Igreja Católica, de onde partiu.

A italiana Chiara Lubich (Sílvia era seu nome de batismo) sempre foi profundamente católica. Sua primei­ra intuição sobre a vasta Obra a que daria impulso veio em uma visita a um santuário mariano em Loreto. Mas sua primeira descoberta da nova espi­ritualidade deu-se mesmo em Trento, sua cidade natal, em 1943. A cidade era destruída pelos bombardeios. Diante de tantas vidas e sonhos desapare­cidos em um instante, Chiara e suas amigas se perguntaram: existe um Ideal que não morre, que nenhuma bomba pode destruir? “Sim, Deus”, foi a resposta. “Decidimos fazer dele o ideal da nossa vida”, relataria ela anos mais tarde.

Trinta e cinco anos depois, com o Movimento já consolidado, Chiara abriu um escritório para o ‘diálogo com pessoas de convicções não religio­sas’. E não houve surpresa nesse anún­cio. Desde os anos 70, já havia contatos com ateus, agnósticos ou indiferentes que compartilhavam os objetivos do Movimento. Assim, Chiara contava com pessoas que negavam ou não reconheciam a existência daquele que era seu Ideal de vida. E isso sem falar nos contatos que os Focolares já manti­nham com membros de outras igrejas cristãs, como luteranos e anglicanos, e de outras religiões, como judeus, muçulmanos e budistas.

 

A UNIDADE COMO VOCA­ÇÃO

A explicação para esse para­doxo vem de outra descoberta que viria a fundamentar a espiritualidade focolarina, ainda em Trento, em 1943, debaixo de bombardeios. Como sem­pre acontecia nesses momentos, Chia­ra e suas companheiras corriam para o abrigo antiaéreo levando somente o Evangelho. Abriram o livro e encon­traram a passagem do Evangelho de João em que Jesus pede a Deus: “Pai, que todos sejam um”.

O desejo de Jesus virou para aquelas moças uma ordem. “Aquelas palavras nos punham no coração a certeza de ter nascido para aquela página do Evangelho”, resumiria Chiara em 1997. Num texto de 1985, ela seria ainda mais explícita: “A unidade é a nossa vocação específica”. Assim, o Movimento dos Focolares se caracteriza também por adotar uma espiritualidade comunitária, em que as pessoas caminham juntas, nunca isoladamente.

Não muito tempo depois, ou­tra descoberta revelaria a ‘chave’ para chegar à unidade. Certo dia, um sacerdote revelou a Chiara que o momento de maior sofrimento de Jesus foi quando ele gritou na Cruz: “Meu Deus, meu Deus, por que me abandonastes?”. Impressionada por essas palavras, Chiara concluiu: “Se a maior dor de Jesus foi o abandono por parte do seu Pai, nós seguiremos Jesus abandonado”. A partir desse momento, Ele, o Abandonado, passou a ser o único esposo de Chiara.

Deus como Ideal, a Unidade, Jesus Abandonado… Essas foram apenas três de uma série de ‘descobertas espi­rituais’ que Chiara fez junto com suas companheiras. Em Trento, todos os sábados à tarde, a comunidade era con­vidada para ouvir Chiara falar de suas descobertas e experiências. Assim, em 1945, já havia cerca de 500 pessoas que aderiam a essa espiritualidade, algumas delas propondo-se também a seguir a estrada de consagração total a Deus escolhida por Chiara e suas primeiras companheiras.

No verão de 1949, essas moças vivem um outro período de forte expe­riência mística de compreensão do seu percurso espiritual, que chamaram de ‘Paraíso de 49’. Os textos produzidos durante esse período iriam tornar-se, com o tempo, material de formação es­piritual e objeto de estudo de teólogos e outros cientistas.

 

‘A VIDA É PRODUZIDA COM A MORTE’

O ‘Paraíso de 49’ serviu também como preparação para uma década de grandes contrastes. Por um lado, todos os anos Chiara e suas companheiras passavam o verão nas montanhas trentinas e cada vez mais simpatizantes as acompanhavam. Chiara percebeu que aí surgia então, temporariamente, uma pequena ci­dade fundamentada nos preceitos do Evangelho. E chamou-a Mariápolis ou ‘Cidade de Maria’. Em 1959, último ano de encontro naquela região, passaram pela Mariápolis mais de 10 mil pessoas, entre as quais alguns brasileiros.

Em paralelo, o crescimento do Movimento despertava a atenção da Igreja. Assim, os bispos italianos iniciaram investigação rigorosa sobre aquelas moças, pois o Movimento não se encaixava nos padrões das associa­ções leigas da época, a começar pela liderança feminina. Recordando o contexto histórico, à época ainda não acontecera o Concílio Vaticano II e, para muitos católicos, ‘unidade’ era só o nome do jornal do Partido Comunista…

Chiara foi convocada pelo Santo Ofício (hoje a Congregação Pontifícia para a Doutrina da Fé) para vários interrogatórios. Com cada um deles, vinha o temor de que fosse decretada a dissolução da Obra nascente. E, de fato, em 1960 uma comissão da Confe­rência Episcopal Italiana recomendou o fechamento dos Focolares. Essa foi uma das maiores experiências de Jesus abandonado que ela viveu. “Nós o sabemos: a vida se paga; a vida que, por meio de nós, chega a muitas almas, é produzida com a morte”, escreveu. Mesmo assim, em nenhum momento Chiara deixou de confiar na Igreja.

‘UMA ESPIRITUALIDADE UNIVERSAL’

Finalmente, em 1962, o Movimento foi aprovado pelo papa João XXIII, com o nome de Obra de Maria. E, desde então, todos os papas e muitos bispos apoiaram o trabalho de Chiara. Além de comparecer a vários eventos, São João Paulo II visitou o Centro Internacional do Movimento em 1984. E mais recentemente, em 2018, Francisco esteve na cidadela permanente de Loppiano (Itália), na região de Florença.

Em outro paradoxo desta his­tória, enquanto o Movimento sofria restrições na Itália, começava a se expandir para outros países. Em 1958, os primeiros focolarinos chegaram ao Brasil; a segunda Mariápolis do Sul foi realizada aqui em Sorocaba, em julho de 1965, no então Seminário Diocesano ‘São Carlos Borromeu’, na avenida Dr. Eugênio Salerno, por ini­ciativa do então recém-chegado bispo coadjutor dom José Melhado Campos, que havia conhecido a espiritualidade de Chiara durante os intervalos do Concílio Vaticano II em Roma; em 1967, o Movimento chegou ao último continente que faltava, a Oceania. E assim, em todo o mundo, foram se re­produzindo as Mariápolis. Primeiro, como encontros-laboratórios de cida­dezinhas evangélicas; depois, a partir de 1964, como cidadelas permanentes, ‘faróis sobre o monte’, diria Chiara, de sociedades movidas pela lei do Amor. No Brasil, nasceram três, em São Paulo, em Vargem Grande Paulista, pouco adiante da cidade de São Roque, em direção a Ibiúna; Recife e Belém.

À medida que os anos passavam, percebeu-se que a espiritualidade da Unidade pode ser benéfica não somen­te para a Igreja, mas para toda a Huma­nidade. Essa constatação veio também da sociedade. Chiara recebeu, em menos de dez anos, dezesseis títulos de doutora ‘honoris causa’ e dezessete de cidadã honorária em vários países do mundo. Em Sorocaba, também é nome de rua, proposta logo depois de seu falecimento em 2008 pelo ex-prefeito e ex-vereador Paulo Francisco Mendes à Câmara Municipal.

“Esta espiritualidade comunitá­ria não está ligada necessariamente ao Movimento dos Focolares: ela é universal e, portanto, pode ser vivida por todos”, resumiu Chiara em 1996. “De fato, através dela foram abertos diálogos fecundos com todos os ho­mens, inclusive com fiéis de outras religiões e com pessoas das mais diversas culturas, que encontram os valores em que creem postos em rele­vo, e juntos nos encaminhamos para a plenitude de unidade à qual todos tendemos”.

 

ADAPTADO de texto do jornalista Airam Lima Júnior, para a edição de janeiro da revista Cidade Nova, edição brasileira, em homenagem ao centenário de nasci­mento de Chiara Lubich

 

 

RÁPIDA LINHA DO TEMPO

De Trento para o mundo

22 de janeiro de 1920 – Nasce em Trento, a segunda de quatro filhos da família Lubich, tão unida, quanto diversificada: o pai, tipógrafo, é socialista; a mãe, católica fervorosa; o irmão mais velho, médico, jornalista e comunista.

1938 – Conclui o curso de Magistério. Passa a trabalhar como professora.

1939 – Participa de um encontro de estudantes católicas em Loreto, onde fica o Santuário que abriga a casa onde teria vivido a Sagrada Família de Nazaré. Contemplando o local, tem a primeira intuição de que percorreria uma ‘quarta estrada’ na Igreja (nem religiosa, nem casada, nem solteira).

1943 – Participa da Ordem Terceira Franciscana e, seguindo o hábito dessa obra, adota o nome de Chiara (em português, ‘Clara’), em homenagem à santa de Assis.

7 de dezembro de 1943 – Consagra-se totalmente a Deus com um voto de castidade. Sobre esse momento, ela dirá: “Desposei Deus”. Chiara nem de longe pensa em fundar algum movimento, mas logo algumas de suas amigas (Natalia, Dori, Giosi e depois outras) desejam compartilhar com ela suas descobertas e seu modo de vida.

13 de maio de 1944 – Um violento bombardeio atinge Trento, inclusive a casa da família, que se vê obrigada a sair da cidade. Chiara, porém, permanece, para sustentar o grupo que estava nascendo ao seu redor. Mais tarde, vai morar, com suas primeiras companheiras em um apartamento na Piazza dei Cappuccini (Praça dos Capuchinhos). Assim nasce o focolare.

1947 – Primeira aprovação diocesana do nascente movimento, por dom Carlo De Ferrari, arcebispo de Trento. “Aqui tem o dedo de Deus”, reconhece ele.

1948 – Encontra em Roma, no Parlamento italiano, o deputado, escritor, bibliotecário e jornalista Igino Giordani, pai de quatro filhos. Ele se tornará o primeiro focolarino casado. Chiara lhe dará o nome de Foco e o considerará cofundador do Movimento pela sua contribuição decisiva para a encarnação da espiritualidade da unidade na sociedade e para o desenvolvimento do diálogo ecumênico.

1991 – Na Mariápolis Araceli (hoje Mariápolis Ginetta), em Vargem Grande Paulista, lança a proposta da ‘Economia de Comunhão’.

1996 – Em Nápoles (Itália), com um grupo de políticos de diferentes partidos, lança o Movimento Político pela Unidade.

1998 – Faz sua última visita ao Brasil. Recebe a Ordem do Cruzeiro do Sul, pelo empenho em favor das classes mais carentes e pela promoção da Economia de Comunhão.

14 de março de 2008 – Depois de três anos de debilidade progressiva, morre em sua casa, em Rocca di Papa, nas cercanias de Roma.

2015 – O bispo de Frascati (Itália), dom Raffaelo Martinelli, abre a causa de beatificação e canonização de Chiara Lubich. Desde dezembro de 2019, o processo está no Vaticano.

 

Fonte: Diário de Sorocaba

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